O segundo motivo é que “Laranja Mecânica” é uma obra tão
complexa, tão cheia de significados, questionamentos, interpretações... que um
comentário, por mais extenso que seja, jamais irá abordar todos os aspectos que
o filme contém. Então, creio que preciso escrever tantos comentários quantas
forem as reflexões que o filme me desperta. Retirando das minhas costas a
responsabilidade de escrever um comentário único e definitivo sobre o filme, me
sinto mais confortável para analisar a obra do Sr. Kubrick e do escritor
Anthony Burgess.
Este comentário me foi “encomendado” pelo meu antigo
amigo e companheiro de banda Fuga Pylla Kroth, que ao solicitar a matéria me
criou a dualidade – fiquei feliz de ter a honra de comentar meu filme favorito,
mas, paralisado com a responsabilidade de escrever estas linhas. Uma composição
minha na banda Fuga homenageava o filme, logo, Pylla é uma das pessoas mais
recomendadas para solicitar este texto. Bem, o comentário está aqui Magro
Pylla!
Scanner do meu próprio exemplar |
Sobre o filme – é interessante adentrar nos fatores
histórico-sociais da época. No Brasil o regime militar impôs uma dura censura
às atividades intelectuais. Faço um paralelo com o personagem do Henfil das
histórias do gibi “Fradim”. Tratava-se de um padre que, como forma de se opor
ao controle de pensamento, praticava condutas politicamente incorretas e
maldades imperdoáveis. Era a forma que Henfil achou para questionar o controle
ideológico mascarado pelos detentores do poder de: bom gosto, educação e ética.
O “Baixim” do gibi do Henfil é outro personagem semelhante ao protagonista de
Laranja Mecânica.
Baixim, do Henfil, outro grande contestador. |
O filme teve sua exibição proibida no Brasil desde seu
lançamento até o final de1978 época em que o regime militar soltava as amarras
da censura e permitia a entrada de vários filmes no Brasil (como exemplo:
Último Tango em Paris, Emanuelle, Decameron...).
Porém um aspecto importante é que para não haver uma
total liberação do filme, os censores liberaram Laranja Mecânica com bolas
pretas que tapavam os genitais expostos na tela. Tal atitude demonstrou o
desconhecimento estético-filosófico dos censores, pois, a profundidade e a
contundência da obra se dá ao nível das ideias e não da obscenidade sexual. Na
mente dos censores a “indecência” do filme era mostrar pelos pubianos e não a
crítica social, comportamental e política que ali estava.
Não vejo problemas em citar a história, haja vista que muitos
já assistiram ao filme (CASO VOCÊ, LEITOR, NÃO TENHA ASSISTIDO AO FILME PULE
ESTE PARÁGRAFO): Alex, adolescente mimado exercita sua perversidade ingerindo
drogas estimulantes e saindo com seus amigos para linchar, violentar e roubar
as pessoas que, ao acaso cruzam sua frente. Alex é tão desprezível que ao
despertar antipatia dos próprios amigos eles lhe armam uma emboscada na qual o
protagonista é preso. Na cadeia, visando reduzir sua pena, Alex aceita se
submeter ao “Tratamento Ludovico”, uma técnica na qual seus impulsos agressivos
são obstaculizados pela reação de dor física e náuseas causados por
medicamentos enquanto Alex é submetido a exposição de cenas de violência.
Intensamente maltratado, o corpo de Alex passa a reprimir seus instintos
violentos e sexuais. Devolvido à sociedade, teoricamente “curado”, Alex se
encontra tão indefeso que sofre vinganças brutais ao se reencontrar com suas
vítimas. Todas demonstram serem seres humanos capazes da mesma brutalidade que
o protagonista. Renegado pela família e intensamente agredido Alex passa ser
porta voz do governo, criticado pelo programa de reabilitação ao qual Alex foi
submetido. E assim, Alex é utilizado para servir à propaganda política e, com o
tempo, é retirado o manto que coíbe seus instintos violentos, fazendo renascer, ainda
que em sua mente, seus talentos inatos.
Enquanto ideia, Laranja Mecânica discute em profundidade
a violência existente no “Id” que Freud afirmava existir em cada um de nós.
Tais instintos seriam amplamente manifestados caso não fossem coibidos pela empatia
e pelos padrões sociais. Os personagens agredidos por Alex são implacáveis em
sua vingança e, por óbvio, todos nós entendemos que Alex é merecedor do
castigo. Essa abordagem questiona, na realidade quem somos nós e, até que ponto
e intensidade o castigo é realmente para punir o agressor e prevenir a futura
conduta ou se no fundo estamos apenas buscando motivos para exercitar nossa
violência além do limite necessário, sob a alegação de “defesa da moral e dos
bons costumes”....
Enquanto filme, Laranja Mecânica é perfeito! Tecnicamente
Kubrick está muito acima de qualquer outro diretor que vi. Destaco várias cenas
(é difícil não destacar o filme inteiro, mas, vamos lá): a belíssima tomada em
azul (estandarte do filme) no linchamento do bêbado sob a ponte; a magnífica
cena do assassinato da dama dos gatos alternando a escultura do pênis e a
pintura das bocas; a surra que Alex dá nos amigos em câmara lenta; O Tratamento
“Ludovico” em si; o teste pelo qual Alex
passa no palco para se mostrar recuperado... Laranja mecânica é uma experiência visual e sonora de intenso grau de perturbação,
mas recomendada apenas para quem tem estômago para aguentar a brutalidade
grandiloquente e satírica estampada na tela.
Alex e seus "drugues" se preparam para a "velha Ultraviolência" |
A deformação visual do filme se deve ao fato de ser
narrado em primeira pessoa. É como se o espectador, narcotizado pela substância
“moloko” visse o mundo pelos olhos de Alex, ou como seus íntimos confidentes. A
isto se deve o visual vertiginoso da película.
Alex, prestes a aplicar um "corretivo" na gangue |
A música também merece destaque: a trilha sonora composta
pelo genial e inovador Walter Carlos (hoje Wendy Carlos – após se submeter à
cirurgia para troca de sexo), confere à obra a atmosfera necessária como se o
espectador, sob alucinação, convertesse as belíssimas obras clássicas em sons
eletrônicos.
A música original de Walter Carlos |
Homenageei Laranja Mecânica em uma das minhas composições
musicais (claro, ressalvada a mediocridade da minha composição em comparação à
genialidade de Kubrick e Burgess). Laranja Mecânica sempre será muito presente
em minha vida, não por me identificar com Alex - acho abominável seu
comportamento - mas pela estética e a profundidade do estudo do comportamento
humano constantes na obra.
A "conversão" de Alex em um "cidadão-modelo". |
Minha vida foi profundamente marcada quando, ao final de
1978, o jornal da 22h da Globo veiculou uma cena do filme: aquela em que a
gangue de Alex adentra ao leite-bar Korova após estuprar e esposa do escritor.
Nesta cena Alex agride Dim. A estética me marcou intensamente. Percebi no ato
que se tratava de uma obra de vanguarda, revolucionária. A partir daí coleciono
tudo relativo ao filme. Laranja mecânica compõe uma parte importante da minha
personalidade intelectual. Enquanto eu estiver vivo (e talvez até depois) vou
repetidas vezes voltar a mergulhar no pesadelo dos senhores Kubrick e Burgess,
com prazer. E com certeza cada vez retornarei com mais e mais ideias e
reflexões, pois, a cada repetição uma nova “lavagem cerebral” ativa novos
caminhos na minha mente.
Não há nota possível para o filme, 10 é apenas um número,
reducionista em vista da perfeição. O infinito é o limite. Talvez aí seja
possível quantificar a Laranja Mecânica – com ou sem bolas pretas.
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