segunda-feira, 14 de novembro de 2011

LARANJA MECÂNICA: a violência inerente ao ser humano na sinfonia visual de Stanley Kubrick.

É difícil escrever qualquer comentário sobre Laranja Mecânica, por vários motivos: primeiro, considero o melhor filme da historia do cinema. Tenho predileção absoluta pela obra e considero Stanley Kubrick o melhor diretor de todos os tempos – com infinita vantagem sobre todos os outros. Isto, por si só, já retira dos meus comentários a isenção e a frieza necessárias para que o presente comentário seja considerado uma crítica. Bem, não me considero um crítico no sentido literal da palavra, mas, um comentarista, uma vez que me permito acrescentar elementos da minha subjetividade e gosto pessoal aos comentários que elaboro.

O segundo motivo é que “Laranja Mecânica” é uma obra tão complexa, tão cheia de significados, questionamentos, interpretações... que um comentário, por mais extenso que seja, jamais irá abordar todos os aspectos que o filme contém. Então, creio que preciso escrever tantos comentários quantas forem as reflexões que o filme me desperta. Retirando das minhas costas a responsabilidade de escrever um comentário único e definitivo sobre o filme, me sinto mais confortável para analisar a obra do Sr. Kubrick e do escritor Anthony Burgess.

Este comentário me foi “encomendado” pelo meu antigo amigo e companheiro de banda Fuga Pylla Kroth, que ao solicitar a matéria me criou a dualidade – fiquei feliz de ter a honra de comentar meu filme favorito, mas, paralisado com a responsabilidade de escrever estas linhas. Uma composição minha na banda Fuga homenageava o filme, logo, Pylla é uma das pessoas mais recomendadas para solicitar este texto. Bem, o comentário está aqui Magro Pylla!
Scanner do meu próprio exemplar
Primeiramente o livro: li várias vezes Laranja Mecânica e creio que vou ainda ler muitas vezes mais. Noticias relatam que a obra partiu de um caso verídico no qual a esposa do escritor Burgess realmente foi atacada e estuprada. Tal fato mexeu com as ideias do escritor que buscou exorcizar no papel suas angústias. E com isto o Estado levou sua parcela de culpa.

Sobre o filme – é interessante adentrar nos fatores histórico-sociais da época. No Brasil o regime militar impôs uma dura censura às atividades intelectuais. Faço um paralelo com o personagem do Henfil das histórias do gibi “Fradim”. Tratava-se de um padre que, como forma de se opor ao controle de pensamento, praticava condutas politicamente incorretas e maldades imperdoáveis. Era a forma que Henfil achou para questionar o controle ideológico mascarado pelos detentores do poder de: bom gosto, educação e ética. O “Baixim” do gibi do Henfil é outro personagem semelhante ao protagonista de Laranja Mecânica.
Baixim, do Henfil, outro grande contestador.

O filme teve sua exibição proibida no Brasil desde seu lançamento até o final de1978 época em que o regime militar soltava as amarras da censura e permitia a entrada de vários filmes no Brasil (como exemplo: Último Tango em Paris, Emanuelle, Decameron...).

Porém um aspecto importante é que para não haver uma total liberação do filme, os censores liberaram Laranja Mecânica com bolas pretas que tapavam os genitais expostos na tela. Tal atitude demonstrou o desconhecimento estético-filosófico dos censores, pois, a profundidade e a contundência da obra se dá ao nível das ideias e não da obscenidade sexual. Na mente dos censores a “indecência” do filme era mostrar pelos pubianos e não a crítica social, comportamental e política que ali estava.

Não vejo problemas em citar a história, haja vista que muitos já assistiram ao filme (CASO VOCÊ, LEITOR, NÃO TENHA ASSISTIDO AO FILME PULE ESTE PARÁGRAFO): Alex, adolescente mimado exercita sua perversidade ingerindo drogas estimulantes e saindo com seus amigos para linchar, violentar e roubar as pessoas que, ao acaso cruzam sua frente. Alex é tão desprezível que ao despertar antipatia dos próprios amigos eles lhe armam uma emboscada na qual o protagonista é preso. Na cadeia, visando reduzir sua pena, Alex aceita se submeter ao “Tratamento Ludovico”, uma técnica na qual seus impulsos agressivos são obstaculizados pela reação de dor física e náuseas causados por medicamentos enquanto Alex é submetido a exposição de cenas de violência. Intensamente maltratado, o corpo de Alex passa a reprimir seus instintos violentos e sexuais. Devolvido à sociedade, teoricamente “curado”, Alex se encontra tão indefeso que sofre vinganças brutais ao se reencontrar com suas vítimas. Todas demonstram serem seres humanos capazes da mesma brutalidade que o protagonista. Renegado pela família e intensamente agredido Alex passa ser porta voz do governo, criticado pelo programa de reabilitação ao qual Alex foi submetido. E assim, Alex é utilizado para servir à propaganda política e, com o tempo, é retirado o manto que coíbe seus instintos violentos, fazendo renascer, ainda que em sua mente, seus talentos inatos.

Enquanto ideia, Laranja Mecânica discute em profundidade a violência existente no “Id” que Freud afirmava existir em cada um de nós. Tais instintos seriam amplamente manifestados caso não fossem coibidos pela empatia e pelos padrões sociais. Os personagens agredidos por Alex são implacáveis em sua vingança e, por óbvio, todos nós entendemos que Alex é merecedor do castigo. Essa abordagem questiona, na realidade quem somos nós e, até que ponto e intensidade o castigo é realmente para punir o agressor e prevenir a futura conduta ou se no fundo estamos apenas buscando motivos para exercitar nossa violência além do limite necessário, sob a alegação de “defesa da moral e dos bons costumes”....

Enquanto filme, Laranja Mecânica é perfeito! Tecnicamente Kubrick está muito acima de qualquer outro diretor que vi. Destaco várias cenas (é difícil não destacar o filme inteiro, mas, vamos lá): a belíssima tomada em azul (estandarte do filme) no linchamento do bêbado sob a ponte; a magnífica cena do assassinato da dama dos gatos alternando a escultura do pênis e a pintura das bocas; a surra que Alex dá nos amigos em câmara lenta; O Tratamento “Ludovico”  em si; o teste pelo qual Alex passa no palco para se mostrar recuperado... Laranja mecânica é uma experiência visual e sonora de intenso grau de perturbação, mas recomendada apenas para quem tem estômago para aguentar a brutalidade grandiloquente e satírica estampada na tela.
Alex e seus "drugues" se preparam para a "velha Ultraviolência" 

A deformação visual do filme se deve ao fato de ser narrado em primeira pessoa. É como se o espectador, narcotizado pela substância “moloko” visse o mundo pelos olhos de Alex, ou como seus íntimos confidentes. A isto se deve o visual vertiginoso da película.
Alex, prestes a aplicar um "corretivo" na gangue

A música também merece destaque: a trilha sonora composta pelo genial e inovador Walter Carlos (hoje Wendy Carlos – após se submeter à cirurgia para troca de sexo), confere à obra a atmosfera necessária como se o espectador, sob alucinação, convertesse as belíssimas obras clássicas em sons eletrônicos.

A música original de Walter Carlos
Enfim, como dito acima, este é o primeiro de uma série de ensaio que pretendo fazer sobre aquela que parar mim é a obra máxima do cinema. Impossível abordar todos os pontos e sutilezas do filme em um único comentário. O filme se presta a todos os tipos de análises, tamanha sua complexidade e detalhamento.

Homenageei Laranja Mecânica em uma das minhas composições musicais (claro, ressalvada a mediocridade da minha composição em comparação à genialidade de Kubrick e Burgess). Laranja Mecânica sempre será muito presente em minha vida, não por me identificar com Alex - acho abominável seu comportamento - mas pela estética e a profundidade do estudo do comportamento humano constantes na obra.
A "conversão" de Alex em um "cidadão-modelo".

Minha vida foi profundamente marcada quando, ao final de 1978, o jornal da 22h da Globo veiculou uma cena do filme: aquela em que a gangue de Alex adentra ao leite-bar Korova após estuprar e esposa do escritor. Nesta cena Alex agride Dim. A estética me marcou intensamente. Percebi no ato que se tratava de uma obra de vanguarda, revolucionária. A partir daí coleciono tudo relativo ao filme. Laranja mecânica compõe uma parte importante da minha personalidade intelectual. Enquanto eu estiver vivo (e talvez até depois) vou repetidas vezes voltar a mergulhar no pesadelo dos senhores Kubrick e Burgess, com prazer. E com certeza cada vez retornarei com mais e mais ideias e reflexões, pois, a cada repetição uma nova “lavagem cerebral” ativa novos caminhos na minha mente.

Não há nota possível para o filme, 10 é apenas um número, reducionista em vista da perfeição. O infinito é o limite. Talvez aí seja possível quantificar a Laranja Mecânica – com ou sem bolas pretas.

  

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